A mesquita aljama almorávida de Lisboa: o que ficámos a saber

A mesquita aljama almorávida de Lisboa: o que ficámos a saber

Quinta-feira, noticiámos a denúncia feita pelo STARQ (sindicato independente de arqueólogos portugueses) da autorização de demolição dos restos da mesquita aljama (principal) de Lisboa preservados no Claustro da Catedral, construída em cima deste edifício após a conquista cristã de Lisboa. Já tinham sido noticiados em Dezembro pelo jornal “Público” e teriam sido supostamente preservados pela tutela face ao clamor que se gerou na altura, contudo na prática agora verifica-se o contrário.

Entretanto, quer pela imprensa, quer por fontes anónimas, ficámos a saber a verdadeira escala do que foi encontrado, apesar do véu de secretismo suspeito à volta do assunto. No fim de contas, parte da mesquita, incluindo uma divisão decorada com bandas vermelhas e brancas com acesso à sala de orações, localizada por baixo da Sé, e uma divisão abobadada dos banhos ou “hammam” associados já tinha sido descoberta em 1990, mas até 2018 estes e outros vestígios entretanto descobertos não tinham sido identificados como tal.

As obras entretanto desenvolvidas na 2ª Fase do Projecto de Recuperação e Valorização da Sé de Lisboa permitiram a identificação destes restos e ainda descobriram um novo andar na zona Sul desta mesquita, que deverá ter ao todo 200m2. Nove compartimentos de grandes dimensões estão escavados, com paredes entre 2 e 5 metros de altura, incluindo, para além das áreas acima mencionadas, pátios, áreas de acesso e restos do minarete, com o piso inferior e escadas para o superior preservados. 

Para além de se confirmar a tradição de que a mesquita aljama existente em 1147 esteja por baixo da actual Catedral cristã, a análise arquitectónica e arqueológica (nomeadamente através de cerâmicas) permite datar esta mesquita do período almorávida (dinastia do Norte de África com presença no al-Andalus entre 1091 e 1148), sendo portanto posterior à conquista da cidade por este emirado norte-africano aos leoneses em 1094. Não há outras mesquitas conhecidas deste período em todo o território peninsular e os únicos edifícios análogos a este estão no Norte de África, o que faz deste achado uma referência em toda a arqueologia da bacia mediterrânica! Em Marrocos, temos restos em Marraquexe e Fez, mas fortemente alterados pela reconstrução das mesquitas destas cidades pelos almóadas a partir de meados do século XII. Só na Argélia temos mesquitas comparáveis, em Argel, Tlemcen e Nedroma. Ou seja, vemos aqui possivelmente um sinal de investimento do emirado almorávida na cidade de al-Ushbuna, o que estará associado à sua importância como cidade de fronteira da Fronteira Inferior e como porto atlântico importante devido ao estuário do Tejo, por onde qualquer ataque marítimo ao al-Andalus teria de passar. 

Pensar-se-ia naturalmente que a preservação deste Património único e importante, tanto para a cidade de Lisboa como para a nossa compreensão das mesquitas e da prática religiosa islâmica no Gharb al-Andalus, seria preservada. Contudo, tanto o arquitecto responsável como o Patriarcado e a DGPC estão apostados em fazê-los desaparecer. A DGPC autorizou a desmontagem dos vestígios e alega que “correspondem a um pequeno troço de parede à qual se encontra adossado um banco construído em alvenaria de tijolo com dois pequenos arcos”, o que justifica com base em argumentos de segurança estrutural e de implementação do projecto. 

Porém, sabemos que a DGPC não afirmou a verdade à Agência Lusa porque está prevista a demolição de 7 dos 9 compartimentos encontrados e será visível apenas metade de 1 sobrevivente, de acordo com o projecto agora existente. Percebemos a necessidade de boas Relações Públicas, mas um organismo estatal não deve mentir de forma tão descarada à população. Nem percebemos a questão de segurança da ala Sul do claustro quando o mais natural seria aterrar tudo outra vez ou deixar como está, pois o verdadeiro elemento disruptor é a obra e não o que ficou aterrado ainda no século XII. Fica óbvio pela leitura do comunicado que a verdadeira razão da DGPC é despachar a obra de modo a evitar a perda de fundos europeus e construir o museu no sítio onde estão as ruínas, no contexto de uma intervenção de salvaguarda de Património (!) que supostamente já teria sido planeada há muito e previsto estes contratempos, admitindo uma competente competente. Isto se não houver razões mais obscuras, pois certamente restos tão bem preservados não serão convenientes para o Patriarcado de Lisboa quando olha para Espanha e vê a controvérsia religiosa à volta de vestígios de mesquitas islâmicas por baixo de catedrais ou até mesmo mesquitas ainda estantes reaproveitadas para culto cristão, como é o caso de Córdova. Para não falar do empréstimo bancário contraído pela Igreja para estas obras de musealização, que certamente seriam mais custosas se prolongadas. 

Por isso, junto com uma série de instituições como a AAP ou de arqueólogos e historiadores como Cláudio Torres e Filomena Barros, só podemos condenar veementemente este erro gritante da DGPC, que facilmente rivaliza com erros de entidades anteriores como a DGEMN. A monumentalidade da mesquita recuperada deveria estimular a sua preservação “in situ” e integrada no projecto. Não é para ser “preservada por registo” (leia-se fotografada e os registos arquivados na DGPC) e “desmontada”, o que é gíria do sector para demolir e guardar os materiais num sítio qualquer, onde estão muitas vezes mal identificados e até podem parar ao lixo numa questão de poucos anos. Como tal, não teremos alternativa senão fazer queixa das entidades envolvidas no Ministério Público. Esperamos também que os profissionais da área se envolvam de forma tão ou mais pró-activa do que nós, a começar por José Arnaud (Presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses), que prometeu ao jornal “Público” fazer tudo ao seu alcance para travar a situação ao ainda ontem.

Por fim, apelamos a todos os nossos seguidores para assinarem a petição “online” referente a este assunto. Pode ter sido feita à pressa e não estar endereçada ao organismo mais correcto, mas, quanto mais assinaturas existirem, mais hipóteses haverá de salvar o monumento pela pressão da opinião pública. E sempre será possível pressionar o Estado, a começar pela Assembleia da República, no sentido de repensar o modo de funcionar da DGPC, muito obscuro, cheio de secretismos e sempre com suspeitas de promiscuidade ou até corrupção. É lamentável termos de lutar contra a tutela da qual deveríamos ser os maiores aliados e colaboradores (e estaremos sempre dispostos para o ser futuramente).

Ligação para a petição: https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT103065

Ligações para notícias sobre o assunto:

- “Público”: https://www.publico.pt/2020/09/25/local/noticia/direccaogeral-patrimonio-cultural-acusada-mandar-destruir-vestigios-islamicos-lisboa-1932905

- “Jornal de Notícias”: https://www.jn.pt/artes/desmantelamento-de-ruinas-de-mesquita-gera-polemica-em-lisboa-12761558.html

- “RTP”: https://www.rtp.pt/noticias/cultura/sindicato-de-arqueologos-alerta-para-retirada-de-vestigios-de-antiga-mesquita-em-lisboa_n1261880
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~ Jos

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